08 jan 10: reunião aberta com a BRAL

Participaram deste encontro: Jerusa Messina, Cibele Lucena e Peetssa, do Contrafilé; Olivia Taylor, nascida na Inglaterra, moradora de Lençóis há 16 anos, dona da Pousada dos Duendes, idealizadora da Associação Casa Grande e integrante da BRAL; André, nascido em Pernambuco, ex-morador de Lençóis e integrante da BRAL; Augusto Maximiliano Galinares, nascido na Argentina, morador de Lençóis, dono da agência de turismo Adrenalina e integrante da BRAL; Marcos, nascido em São Paulo, morador de Lençóis, guia, dono da agência de turismo Extreme e integrante da BRAL; Jânio Souza Rocha (Feijão), nascido em Lençóis, guia e integrante da BRAL; Marta, nascida em Feira de Santana/BA, dona do restaurante Feijão na Chapa e integrante da BRAL; Valneide Souza, nascido em Lençóis, integrante do Movimento Avante Lençóis; André Valladão, nascido em São Paulo, guia de escalada, percussionista e integrante da BRAL; Cecília, nascida no Rio de Janeiro, moradora de Lençóis e integrante da BRAL.


















André: História da BRAL é história de perrengue, que se conta em mesa de bar, perrengue no meio da serra, quebrando mato até uma hora da manhã, porque achou que o fogo era no Boqueirão e era lá na Toca da Onça... nessa ficamos 3 dias lá, sem agasalho, sem nada, foi quando eu passei mais frio aqui na Chapada, vendo um fogaréu comendo lá em baixo e a gente em cima da Toca da Onça tremendo. Acho que foi há uns 3 anos atrás...


Olívia: Todo ano a gente está nessa luta, todo ano isso acontece, e só quando estava secando a cidade todo mundo parece que abriu o olho. A gente não pode perder as coisas que aconteceram naquele fogo [2008] por que a Brigada não pode desaparecer de novo, o trabalho ficar desconhecido. Temos que fazer coisas para mantermos na mente das pessoas o trabalho que a gente faz... E também os outros trabalhos, como limpeza de trilhas, para que as pessoas reconheçam que a Brigada tem uma função útil e necessária dentro de Lençóis e da Chapada inteira.


Augusto: Ninguém está preocupado com quem vai subir a serra pra apagar fogo. Aqui é muito forte o fogo na cultura da população local. Temos que mudar essa visão das pessoas daqui, mostrar que o fogo é um problema e que tem gente que dá a vida por causa disso. (...) Temos que passar a mensagem de como é feito o trabalho, de que é medieval, não existe nenhum lugar no mundo onde se combate fogo como aqui no Brasil, principalmente na Chapada. Se conseguirmos mostrar essa carência e, como contrapartida, a força das pessoas que realizam o trabalho sem receber nada, como se tivessem recebendo dois milhões de dólares por cada combate, tenho certeza que iremos longe como Brigada.


Marcos: 2008 foi um ano atípico, o fogo ficou na mídia porque queimou muito, todo mundo se mobilizou porque o fogo chegou próximo da cidade e mostrou que os órgãos federais responsáveis por apagar incêndio são bem desorganizados e não tem capacidade para apagar um fogo de grande porte. Foram 45 dias de fogo sem parar... Isso aconteceu porque foi uma seca, não quer dizer que este ano [2009] está tudo resolvido. Este ano não teve fogo porque a chuva foi bem espalhada, a gente mal trabalhou combatendo fogo. Mas de forma geral todo ano tem fogo... basta ter um veranico que tem fogo, em focos espalhados em diversas partes do parque... o que é possível controlar com o contingente de brigadistas que temos; agora, em 2008 fugiu do controle, pela seca severa que teve, e realmente só acabou mesmo quando chegaram as chuvas.


TURISMO: UM NOVO GARIMPO


Olivia: Com a atitude de quebrar a barragem, no fim, quem ficou como marginal foram as pessoas que quebraram a barragem.


Augusto: Ficaram como marginais só no começo, porque depois se descobriu que os verdadeiros marginais eram pessoas que estavam roubando água, com alto poder aquisitivo, e a Cachoeirinha ficando seca. As pessoas foram chamadas de marginais por que foram lá e destamparam a tampa da panela que estava oculta. Com o tempo as pessoas foram falar no ouvido do delegado que aquilo não era um ato marginal, era a descoberta de um crime. Os “marginais” estavam fazendo um trabalho voluntário e descobriram uma barragem de pessoas lá em cima que não tem outorga e estão usando água do rio para fonte, para grama, para lavar carro, para piscina... e a Cachoeirinha está seca. Quando derrubamos a barragem a Cachoeirinha encheu. As casas do loteamento Parque do Ribeirão, todas se beneficiam com essa água.


Concordo que tem umas pessoas que fazem trabalhos mais radicais do que outras, sendo errado ou não, mas tem horas que volto aos trabalhos radicais, subir a noite, destruir a barragem e acabou.


Valneide: Sobre a questão que o Augusto falou, de ser certo ou errado... há uns seis anos atrás, meu avô Dorico, ele sofreu muito com uma ação deste tipo e ele devia ter já na época quase oitenta anos. Subia todo dia com o saquinho de cimento dele, para fazer uma barragenzinha lá e foi derrubada a barragem. Até hoje o meu avô não sai mais de casa, não pega uma peneira, não vai mais no rio, não é mais gente. Então, quando a gente vai agir com extremo, a gente deve também tentar mediar um pouco, porque como a Olívia disse, às vezes o resultado que você conseguiria em dez anos, com extremo você joga tudo a perder. Eu conheço milhões de brigadistas, fui conselheiro do Parque por muito tempo, e eu vi várias realidades. Sei que o trabalho não é fácil, porque é um trabalho que vai na contra mão, a comunidade acha que é errado, que todo brigadista é marginal, mas o meu avô sofreu bastante com aquilo, com uma atividade que era só para garantir que ele ainda era humano, que podia fazer alguma coisa. E até hoje eu ainda fico com essa questão... o meu avô praticamente morreu por conta de uma ação que poderia ter sido mediada.


Augusto: Na época me acusaram de que o seu avô iria morrer por minha culpa, porque fui eu que fiz a denúncia e a barragem foi destruída. Mas ninguém se preocupou com o que seu avô fez lá em cima da serra. Eu sei que o trabalho dele era centenário, que era o trabalho que deve ter feito o pai, o avô dele, e eu nem conheço ele, mas acho que o seu avô, e outras pessoas que tem aqui, com o tempo tem que começar a entender e a reconhecer que hoje não é mais só o diamante, hoje não é mais só a caça, tem o turismo, tem a palavra ecologia. Eu sei que ele é velho e é mais difícil compreender essas coisas... mas ele sabia muito bem que estava reativando uma coisa que estava parada há muito tempo e com isso estava passando por cima da vida de animais, flora, fauna e acabando com as trilhas do turismo que levava a gente para a cachoeira do Capivarí. Ele remontou aquela barragem muito antiga, que estava desativada porque a natureza quebrou, e fez uma lagoa de uns 300 metros onde era moradia de tatus, teiús, calangos, bromélias, orquídeas e muitas coisas mais. (...) Ninguém entendeu que eu não fiz aquilo para ferrar com o Sr. Dorico, o negócio foi a preservação da natureza e das trilhas do turismo.


Olívia: Mas sobre o radical... temos que respeitar a cultura e entender a importância da educação e da conversa. Eu acredito muito na conversa e no entendimento do outro lado para poder combater problemas. Por isso eu acho importante ir na zona rural e entender porque as pessoas botam fogo.


Cibele: As unidades de conservação no Brasil importam um modelo norte-americano no qual homem e natureza não convivem. Então defende-se o tatu, todos os bichos que existem ali, mas os homens que já estão morando nesse espaço são incompatíveis. E todos os parques e espaços de conservação se instituíram em lugares onde existe gente morando há 300 anos, muito antes da criação das leis de proteção. Quem mora no Vale do Pati, por exemplo, está a centenas de anos lidando com o mato e construindo culturalmente uma forma de vida que é muito anterior à idéia de Parque. Esse modelo que separa homem e natureza foi importado e a gente tem que olhar pra ele com olhar crítico. Será que é esse modelo que funciona, separar completamente as práticas sócio-culturais dos bichos e plantas?


Augusto: Esse Parque está cheio de garimpeiros trabalhando, não é porque é Parque que acabou o garimpo. O que acabou foi o garimpo de draga, porque tem motor, gasolina, é destrutivo de mais. Está cheio de garimpeiro, agora vai ver se o garimpeiro está tocando fogo na serra como tocava antes... não toca mais, porque sabe que vai chamar atenção e vai chegar a Brigada... atrás da Brigada vem IBAMA...


Marcos: É incompatível um parque com o garimpo, porque um senhor sozinho, no garimpo manual, artesanal, faz um estrago violento no meio ambiente. Mas é isso... não deram atenção aos garimpeiros na questão social...


Jerusa: Tudo é meio ambiente!


Valneide: Pensando nessa questão da consciência, que tanto o brigadista como o guia colocam, eu vejo que é uma coisa bem do turismo. Quando o turismo chegou em Lençóis quem vivia do garimpo teve que ir viver em outro local... E tem capital de giro quem trabalha com draga, mas quem ganha um “picó” de diamante em não sei quantos meses de trabalho... Não sei se é consciente pensar que destruindo aquilo lá vai salvar todo mundo; e nem se a Brigada vai conseguir os méritos que precisa para que a comunidade possa ver assim: “Nossa, que bacana!” Eu sei que a Brigada é uma coisa extremamente importante e precisa se colocar politicamente para mostrar que realmente esse trabalho é importante. (...) A realidade acaba sendo inversa, porque o extremo faz com que um cara, pelo simples fato de achar que você foi extremista, meta fogo aqui, lá, e o fogo vai parar longe. Eu só vi um cara ser preso na Chapada até hoje por causa do fogo, então a gente deve se preocupar sim com essa ação. A gente sabe que o fogo aqui só pode ser o povo que coloca, mas quem é esse povo? É o caçador que sofre, é o garimpeiro que sofre. Ou a gente trabalha com esse público, tentando envolve-los dentro do turismo, porque já que não vão mais ser garimpeiros eles tem que ser alguma coisa... Não dá para acabar com uma coisa assim, de uma hora para a outra. Tem gente aí que é guia e sabe que na peneira vai ganhar mais, eles estão se estapeando na rodoviária para pegar um turista. Então a gente tem que ver toda a questão, porque só pensar no “meio ambiente” e esquecer das pessoas, será em vão.


Feijão: Normalmente essas pessoas que colocam fogo são pessoas mais velhas. Acredito que em cinco anos, seis anos, não vão estar mais subindo serra para colocar fogo; até fisicamente não vão agüentar. E os filhos dessas pessoas não vão continuar botando fogo, não vão querer comer mais tatu; as pessoas estão evoluindo, não vão ficar com uma cultura de 500 anos. Eu vou querer que meu filho seja guia, não que seja garimpeiro, não quero que meu filho vá matar tatu na serra. A gente tem que focar nas crianças.


Olivia: Mas como o Valneide falou, precisa ter uma alternativa pra essas pessoas.


Augusto: Mas não sei se faz parte da missão da entidade procurar uma fonte de renda para o garimpeiro.


Valneide: E matar quatro ou cinco pessoas dentro de uma família é parte da entidade?


Augusto: Matar? Como assim?


Valneide: Porque quando meu avô sofreu o derrame eu quase cheguei perto disso; talvez a irmã dele também, o filho dele, nós quatro... É isso que eu estou querendo colocar na balança... Mesmo como entidade, você não pode ir ao extremo dessa forma. Eu acho que não é por aí não...


Augusto: Eu falei que a gente tem que fazer o trabalho de educar as crianças, acho que não é parte da entidade começar a pensar se o filho de Valneide vai ser guia, vai ser garimpeiro, e ter que arrumar uma função para seu filho. A entidade tem que arrumar a visão de mostrar o problema do fogo, o problema da caça; agora, não podemos garantir o ofício de seu filho.


MAPEAMENTO DE HISTÓRIAS DO FOGO


Olivia: A gente queria perguntar para os brigadistas em que lugares da zona rural podemos começar um trabalho; se os brigadistas vêm junto – não vestidos de brigadistas – mas para fazer um primeiro contato, chegar lá e, ao invés de ser aquela coisa “contra”, aquela coisa de representante do IBAMA, chegar como parceiros, tentar conversar, ouvir as pessoas, e elas verem os brigadistas como pessoas que vão ajudar na questão do fogo e não reprimir. Tem que ser um processo muito mais produtivo.


Augusto: O fogo na região do Marimbus[1] é o fogo das fazendas, daqueles que tocam fogo nos pastos e ele sai rasgando o Marimbus todo... mas o pessoal do Remanso[2] não tem cultura de colocar fogo.


Olivia: Será que começamos na comunidade Pau de Colher[3]? A gente precisa pensar quais os primeiros lugares para a gente chegar, os pontos mais estratégicos. Na verdade, é uma primeira pesquisa; ainda não é educação nesse momento, para saber o que as pessoas pensam do fogo, qual a importância do fogo na vida dessas pessoas.


Augusto: Na verdade esse trabalho é difícil, porque não tem uma vila, que a gente possa dizer: “Essa vila é tocadora de fogo.” São coisas isoladas.


Marcos: Podemos conscientizar de fazer o aceiro, chamar os brigadistas antes de fazerem uma queimada, esses vão aceitar numa boa. Mas não são esses que botam fogo mesmo. A maior parte do fogo clandestino é de caçador, garimpeiro revoltado, piromaníacos criminosos.


Valneide: Eu acho importante, nesse sentido, o trabalho na zona rural; porque se a comunidade não bota fogo, ela pode monitorar, vigiar; porque o cara que botou fogo vai ter que andar para algum lado, e quem ta na comunidade sabe quem é e quem não é. Por isso é importante, sim... ouvir as pessoas.


Olivia: A gente tem que ver qual a maneira mais fácil para pegarmos o maior número de pessoas... talvez irmos até as Associações. Mas nesse primeiro momento temos que ouvir, para depois poder falar na linguagem da vida dessas pessoas. Eu peguei a lista de todas as escolas da zona rural. Tem muita coisa boa do fogo: com fogo eu cozinho meu feijão, eu limpo minha roça... A gente deve ir para ouvir deles a vivência do fogo; não chegar de maneira agressiva, só fazendo perguntas.


Augusto: É importante ir para ver até que não é lá o lugar. De repente a gente chega achando que é, e não é.


Cibele: É importante a gente trazer isso para dentro desse processo, mostrar que tem comunidades rurais em volta do Parque que não trabalham assim, trabalham de outro jeito.


Olivia: A gente pode fazer um mapa do município de Lençóis com os diferentes usos e históricos do fogo.


Jerusa: A gente pode também levar isso para as escolas e as crianças fazerem esse mapeamento.


Olivia: Podemos ir nas comunidades rurais com o propósito desse mapeamento... acho que as pessoas vão se abrir um pouco.


Cibele: Acho que pode ser um mapeamento bem subjetivo mesmo, não tipo IBGE, um mapeamento de experiências e histórias.



[1] Parte da APA (Área de Proteção Ambiental) Marimbus-Iraquara, que faz fronteira com o Parque Nacional da Chapada Diamantina, localizada dentro dos municípios de Iraquara, Mucugê, Andaraí e Lençóis.

[2] Quilombo localizado na área onde foi criada a APA Marimbus-Iraquara.

[3] Comunidade, recentemente reconhecida como quilombo, pertencente ao município de Andaraí.


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